Cientistas explicam como a poeira vinda do deserto do norte da África influencia na formação de nuvens da floresta amazônica.
Pouco mais de 5,3 mil km e o Oceano Atlântico separam as cidades de Manaus (AM) e Nouakchott, a capital da Mauritânia, no deserto do Saara. Apesar da distância, o deserto do norte da África e a floresta amazônica têm uma relação mais estreita do que senso comum nos leva a acreditar.
Nuvens de poeira e de vapor d'água sobre o deserto do Saara | Foto: Nasa Earth Observatory
Foto: BBCBrasil.com
Tão inesperado quanto esta ligação é o fato de ser o deserto que
beneficia a mata, e não o contrário - sendo responsável pela maior parte
das chuvas torrenciais que caem sobre a região, mantendo sua
exuberância e biodiversidade. Além de enviar toneladas de nutrientes
para sua vegetação, como o fósforo.
Os "núcleos de condensação", a parte da nuvem em que o vapor de água se
condensa, são formados, entre outros elementos, por partículas em
suspensão no ar - poeira, por exemplo. No caso da floresta amazônica,
uma parcela desses aerossóis é proveniente do Saara.
"Este fenômeno de transporte ocorre principalmente na parte norte da
Amazônia, mas já foi registrado também na área central da região, como,
por exemplo, ao sul de Manaus", explica o físico Paulo Artaxo, do
Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Ele é um dos integrantes de uma equipe de pesquisadores do Brasil, dos
Estados Unidos e da Alemanha que vem desenvolvendo, há uma década, um
trabalho que levou à descoberta de que a poeira do deserto ajuda a
formar nuvens sobre a Amazônia Central, onde se localiza Manaus, que são
responsáveis por cerca de 80% das chuvas que caem na região.
Representação artística da camada de poeira na atmosfera da Terra | Imagem: Nasa Goddard's Visualization Studio
Foto: BBCBrasil.com
Mas como o deserto cria precipitações a milhares de quilômetros de distância?
Segundo Artaxo, o fenômeno ocorre todos os anos. Ele começa com as
tempestades no Saara, que levantam toneladas de poeira e areia. Esse
material é transportado de lá, por cima do Oceano Atlântico, até a
floresta amazônica, numa distância mínima de pelo menos 5 mil km - entre
a parte mais ocidental do deserto e Manaus. "Isso ocorre de fevereiro a
maio, pois, nesta época, a chamada Zona de Convergência Intertropical
(ITCZ, na sigla em inglês), fica ao sul de Manaus, favorecendo o
transporte de massas de ar do hemisfério Norte para a Amazônia Central",
explica Artaxo.
Ele diz que, para que haja chuva, são necessários três ingredientes
básicos: vapor de água, condições termodinâmicas ideais e as partículas
que servirão de meio para que o vapor possa se condensar. "Os grãos de
poeira do Saara, que também podem ser chamados de aerossóis, operam como
uma destas partículas em que o vapor de água se condensa", explica
Artaxo, mencionando a hipótese mais aceita para a explicação do
fenômeno.
"Ou seja, eles atuam como núcleos de condensação de gelo, fazendo com
que gotas líquidas, ao atingirem altas altitudes e temperaturas menores
que 10ºC negativos, congelem e formem gotas de gelo, que são eficientes
no processo de formação de chuva na Amazônia."
Artaxo conta que as medidas da concentração de partículas do Saara
foram feitas na Amazon Tall Tower Observatory (ATTO), ou Torre Alta de
Observação da Amazônia, com 325 metros altura, o equivalente a um prédio
de 80 andares. Erguida na reserva ambiental do Uatumã, no município de
São Sebastião do Uatumã, a cerca de 180 km de Manaus, é a maior torre de
monitoramento ambiental e atmosférico do mundo. O objetivo dela é
coletar dados sobre a interação entre a vegetação e atmosfera.
Teste químico
Para testar sua hipótese, os pesquisadores realizaram experimentos em
laboratório. Parte das partículas coletadas na torre ATTO foi injetada
em uma câmara, na qual é possível simular a formação das nuvens
convectivas - nuvens com grandes altitudes verticais, que podem chegar a
15 km da base ao topo, responsáveis chuvas torrenciais e rápidas.
Foto: BBCBrasil.com
Segundo Artaxo, essa câmara reproduz as condições da atmosfera a até 18
km acima do solo, onde prevalecem as baixas pressões e temperaturas -
de até 70ºC negativos. Na natureza, é num ambiente parecido que se
formam as nuvens convectivas.
A certeza de que a poeira encontrada no local vem do Saara e não de um
terreno próximo à torre é dada pela sua composição química, mais
especificamente, pela presença e proporção de alguns elementos, como
alumínio, manganês, ferro e silício. De acordo com Artaxo, a quantidade
desses elementos nas partículas coletadas na Amazônia é igual a
encontrada na poeira do Saara. "Além disso, há a correlação entre a
presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar", diz. "Isso
prova que eles vieram mesmo do deserto africano."
Os cientistas ainda não têm 100% de certeza sobre o mecanismo pelo qual
os aerossóis do Saara ajudam a formar as nuvens e, por consequência, as
chuvas que caem torrencialmente na região. A hipótese mais provável é
que o ferro, presente na poeira do deserto, pode funcionar como um
suporte, sobre o qual o vapor d'água se condensa, formando núcleos de
gelo, que depois se transformam em gotas de chuva.
Fertilizante natural
Não são apenas simples grãos de poeira, entretanto, que o Saara manda para a Amazônia.
Em 2015, a Nasa, a agência espacial americana, divulgou um estudo
segundo o qual todos os anos o deserto envia, junto com o pó, 22 mil
toneladas de fósforo, nutriente encontrado em fertilizantes comerciais e
essencial para o crescimento da floresta. É quase a mesma quantidade
que a mata produz, com a decomposição das árvores caídas e, em seguida,
perde com as chuvas e inundações.
Segundo o levantamento da Nasa, todos os anos 182 milhões de toneladas
de poeira - mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões de areia -
saem do Saara para as Américas do Sul e Central. Desse total, cerca de
28 milhões de toneladas - ou 105 mil caminhões - caem na Bacia
Amazônica, e, junto com elas, o fósforo.
Foto: BBCBrasil.com
A poeira mais rica em fósforo vem da depressão de Bodélé, no Chade, que é um antigo leito de lago, hoje seco.
Devido a sua geografia, o local é atingido por constantes e gigantescas
tempestades, que levantam a areia, que depois é transportado para o
outro lado do Oceano Atlântico. A descoberta é parte de uma pesquisa
maior para compreender o papel da poeira e dos aerossóis no meio
ambiente, no clima local e global.
Os pesquisadores da equipe da qual Artaxo faz parte estão agora
empenhados em descobrir se o aquecimento global pode interferir no
fenômeno do transporte de poeira do Saara para a Amazônia e,
consequentemente, na formação e no volume de chuva na região da floresta
brasileira.
"Um dos efeitos do aquecimento global é mudar a dinâmica da atmosfera, e
o transporte em larga escala", diz. "Isso pode, sim, afetar o
transporte de partículas do Saara para a Amazônia, pois toda a dinâmica
atmosférica pode ser alterada". Mas são necessários mais estudos para
saber como isso ocorrerá.
BBC BRASIL.com
FONTE: Terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário